(THE DREAMERS, UK, França, 2003) -
Segundo
Kant, o belo resulta da concordância harmoniosa entre uma forma sensível
imaginada para exprimir uma ideia concebida para ser expressa por uma forma. O
belo é, assim, a satisfação da imaginação, uma finalidade sem fim, livre e
viva, expandindo-se sem intenções reservadas. Kant distingue essencialmente o
belo do sublime. Aquele consiste na harmoniosa coerência do entendimento e da
imaginação, enquanto este consiste na sua desproporção. Destarte, o belo pode
despertar em nós uma alegria pura, e o sublime traz em si algo de melancólico e
pungente.
A Nouvelle Vague
nasceu dos anseios da juventude francesa dos anos 50. A expressão foi cunhada pela revista francesa L’Express
baseada numa pesquisa sobre os gostos, medos, sonhos e dramas dos jovens da
época, desejosa de liberdade transgressora, social, política, sexual etc.; uma
geração responsável, mais tarde, pelo Maio de 68. Quando os filmes de Chabrol,
Rivette, Truffaut, Godard e Rohmer foram lançadas, a juventude viu seu
sentimento libertário traduzido naquelas obras.
Em
OS SONHADORES, de Bernardo Bertolucci, o desejo de liberdade e transgressão é
dominante, além de estruturar o enredo no qual três jovens (Eva Green, Michael
Pitt e Louis Garrel) buscam no cinema da Nouvelle Vague este sentido da
cinefilia, como entendimento da realidade, através de inúmeras referências a
filmes famosos. Desta forma, o filme de Bertolucci funciona como uma homenagem
ao cinema, no seu sentido mais amplo, ao enfocar a Nouvelle Vague e sua
experiência estética, expandindo novos sentidos promovidos pela fricção com a
arte para além das suas aparências imediatas.
Matthew
(Michael Pitt), um estudante americano, está na França em 1968, para fazer um
intercâmbio. Durante suas visitas à Cinemateca, ele conhece os gêmeos Isabelle
(Eva Green) e Theo (Louis Garrel), ambos também apaixonados pelo cinema. A
partir daí, podemos perceber um aspecto importante da arte: nossa experiência
estética é uma forma de atividade e não apenas uma contemplação passiva. Ou
seja: toda recepção é uma ação de leitura, de interpretação, de avaliação e
fruição. Na recepção, temos o momento no qual toda obra de arte adquire
significado. O cinema (no sentido artístico e arquitetônico) não é uma
instância abstraída da sociedade – o contexto histórico, social e político é
muito relevante para uma compreensão mais aprofundada de qualquer obra. Além do
mais, representa um gozo coletivo, quando se está numa sala escura, em consonância
com aspirações estéticas similares.
O
Belo, segundo o idealismo transcendental, não pode ser uma propriedade objetiva
das coisas (o belo ontológico), mas nasce da relação entre o objeto e o
sujeito, não estando também o sublime nas coisas, mas no homem. Daí ser
possível relacionar este entendimento ao conceito kantiano, segundo o qual o
belo vai muito além do conceito empírico, tradicional ou pessoal, pois não está
ligado apenas à beleza, e sim na verdade, na imaginação, na liberdade, no
conhecimento, acontecendo por meio de uma singularidade. Já no sublime, há
comoção, ausência de superficialidade, intensidade, tornando-o imensurável e
profundo, ultrapassando o ser humano em poder, extensão e força, elevando-o e
comovendo-o.
Isso
posto, voltemos a OS SONHADORES. Três jovens, em Paris, amam o cinema acima de
tudo na vida. Assim, também amam o Belo e se atiram numa experiência estética,
quando criam um mundo próprio, assistindo a filmes clássicos.
Na primavera
de 1968, três planetas – sexo, política e cinema – se alinhavam para exercer um
empuxo gravitacional na vida tal qual a conhecíamos então. Bertolucci consegue
trazer de volta essa atmosfera, como fez em O ÚLTIMO TANGO EM PARIS, limitando quase
todo espaço cênico em um apartamento em Paris. Do lado de fora, as ruas fervem
em manifestações, até o momento de óbvio simbolismo, no qual uma pedra jogada
na janela interrompe o voluntário triângulo introvertido, fragmentando seu
casulo e fazendo o mundo real de gás lacrimogênio e coquetéis Molotov entrar
violentamente nas suas vidas. Então, o belo, a estesia diante da estética
fílmica, sofre uma ruptura inesperada, e o sublime se instala na alma e nos
corações dos jovens cinéfilos inquinando-os com um estuário de frustrações.
“UMA INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA SOBRE A ORIGEM
DO SUBLIME E DO BELO” é um tratado de estética de 1757, escrito por Edmund
Burke, e foi a primeira exposição filosófica a separar o belo do sublime em
suas respectivas categorias racionais. Segundo
Burke, o Belo é
aquilo que é bem-formado e esteticamente agradável, enquanto o Sublime é
aquilo que tem o poder de nos compelir e destruir. A preferência pelo Sublime em detrimento do Belo marcaria a transição da era Neoclássica para
a Romântica .
Neste
ponto, encontrar-se-ia a intersecção desta visão de Burke com a linha narrativa
de OS SONHADORES. A interação entre Michael, Isabelle e Theo tem como alinhave
a percepção do belo, encapsulada numa perspectiva bastante disseminada nos anos
60 – a valorização da juventude. Os três são jovens e belos, perfeitamente
coadunados com o zeitgeist da época e com o pensamento de Burke sobre a
percepção estética. No entanto, há uma questão disruptiva e paradoxal neste
quadro aparentemente harmonioso: apesar da paixão em comum pelo cinema
(estética em estado bruto), os três acabam se insulando do mundo real retratado
exatamente por este cinema tão amado por eles. Esta é a conexão com o Sublime
burkeano: a cinefilia dá a eles um sentido de pertencimento, de união, de força
motriz; mas o isolamento suscitado por esta paixão (cabe aí também uma paixão física,
rompendo com padrões tradicionais, aspecto presente no espírito contestador e iconoclasta
dos anos 60, base, inclusive, para os cineastas da Nouvelle Vague) os afasta da
percepção do real e das questões sociais e existenciais exploradas no filmes
amados por eles. Isso está em homologia com o célebre poema de William Wordsworth,
“Ode on intimations od Immortality from Recollections
of Early Childhood”, um recorte lírico da perda da inocência,
magnificamente explorado no roteiro de SPLENDOR IN THE GRASS (1961), de Elia
Kazan, com Natalie Wood e Warren Beatty.
As
referências cinematográficas ajudam a frestear outros corpos significativos. Nisso,
Bertolucci comanda sua arte com maestria, como quando Matthew olha a chuva
escorrer através do vidro da janela e, sob o efeito da luz, faz parecer lágrimas
rolando no rosto de Michael Pitt. Em outra cena memorável, os três protagonistas
descem uma escada perseguidos por suas próprias sombras, num aceno ao TERCEIRO
HOMEM, de Carol Reed. E, claro, há a literal corporificação da arte numa atriz
de beleza singular – Eva Green – cuja tradução estética é mencionada no último
parágrafo deste ensaio.
A
Nouvelle Vague, homenageada por Bertolucci em OS SONHADORES, representou
notavelmente o espírito libertário da França dos anos 60 e o desgosto com o status
quo da época. O filme cria sentidos e conexões com a experiência estética concomitantemente
coletiva e individual dos personagens e a intencionalidade pretendida por Truffaut
e sua turma. Assim como nos filmes de Godard, a liberdade sonhada e, por vezes,
concretizada, configura o universo diagético também materializado na forma. Estilisticamente,
poder-se-ia apontar, em todos esses filmes, uma descontinuidade visual e
sonora. Em ACOSSADO (1960), por exemplo, a falta de continuidade visual e a
opacidade da montagem se convertem em uma disrupção de movimento. Aduz-se a
isso, a quebra da quarta parede promovida por Godard, sempre alinhado com o
teatro de Brecht. Essas rupturas narrativas apontam para um espírito libertário
– as descontinuidades são como metáforas em defesa da liberdade criativa.
Portanto,
ao ladearmos Bertolucci e os cineastas da Nouvelle Vague, percebemos um aspecto
em comum – um discurso contundente contra as convenções e os padrões
estabelecidos. Forma e conteúdo convergem, produzindo um mesmo sentido, sempre
em defesa das transgressões. Isso fica claro em OS SONHADORES e seus personagens
permanentemente inquietos em relação às convenções sociais e à própria vida. O
apanágio trágico do sublime, de certa forma, ajuda a dar sentido ao mundo
apartado dos três jovens e, ao mesmo tempo, exalta, em todas as leituras
possíveis, a busca incessante do belo, seja pelo amor à sétima arte, seja pela
noção feminina de êxtase estético, representada quando, numa cena inesquecível,
Isabelle (Eva Green, perfeita na metáfora) aparece como a versão palpável – e palpitante
– da Vênus de Milo.