quarta-feira, 15 de junho de 2011

1098 - À PROVA DE MORTE


À PROVA DE MORTE (DEATH PROOF, USA 2007) – de Quentin Tarantino. Fiel às características imanentes à filmografia pregressa do cineasta, Tarantino joga nos nossos olhos um filme explícito de gênero hollywoodiano. Inequivocamente, esbarra-se numa de suas referências mais nítidas - o tributo ao exploitation dos anos 1970, com os seus filmes B repletos de sexo e violência. Destarte, Tarantino compõe o pastiche com personagens caricatos, papo-furado feminino, signos da cultura pop americana e muita ação automobilística, além das alusões aos clássicos do cinema dos anos 70. Sem muito esforço, aparecem as motivações imediatas, as cores primárias, os lugares prosaicos e músicas populares da época: “Baby It´s You” (Burt Bacharach), “Down in Mexico” (The Coasters), “Hold Tight” (Dave Dee, Dozy, Beaky, Mick & Tich), entre outras da inspirada trilha, que é outro achado. A gente logo percebe que está diante da história manjadíssima (mas Tarantino nunca quis ser original) de um psicopata sádico persegue gostosas descerebradas para trucidá-las em cenas brutais que levam o termo “descerebradas” a ser entendido ao pé da letra. A câmera fetichista abusa nos closes em shortinhos apertados e pés desnudos, com direito à dança erótica (lap dance). Kurt Russell é Stuntman Mike: ex-dublê machão, com cicatriz e tudo, que pilota um Dodge Challenger extraído diretamente de Corrida Contra o Destino (1971). Sem uma gota de culpa a lhe rolar pela face cicatrizada, o assassino ao volante escolhe “namoradas” pela cidade e as mata com o seu muscle car preto. O personagem sublima a falta de amor/sexo de belas mulheres por meio de perseguições e rachas excitantes. Para ele, o possante carro é como extensão fálica, o que o faz, literalmente, penetrar as mulheres com o veículo. O velho charme do efeito retrô, aparece em imagens riscadas, cortes descontínuos, planos perdidos, manchas brancas e pretas, interrupções do áudio e falhas de montagem. O procedimento também serve para desnarrativizar a história e, e certo modo, perturbar o espectador, como quando há o primeiro desastre provocado por Mike. Entretanto, afora essa seqüência, À Prova de Morte é narrado de modo contínuo. Organizado como díptico, divide-se em duas partes de mesma estrutura de personagens e ação, que se antagonizam no desfecho. Se, na primeira, o psicopata motorizado é bem-sucedido em massacrar as três hot girls; na segunda, elas renascem na pele de outras atrizes, para uma vingança adivinhada e, confesso, deliciosa. Eis o tema tarantinesco da mulher poderosa, que faz e acontece, movida à vingança na mais alta octanagem, a exemplo de Jackie Brown (Pam Grier, no filme homônimo), Beatrix Kiddo (Uma Thurman, em Kill Bill) ou Shosana Dreyfus (Melanie Laurent, em Bastardos Inglórios). Todas elas se vingam de homens prepotentes e controladores. É a celebração da alegria na degustação da pura vingança. Se não há moral no universo de Tarantino, existe uma ética da potência, na medida em que os personagens lutam por si mesmos, na relação de forças, para sobrepujar os agressores. Tarantino se equilibra admiravelmente no processo de explorar até a última gota de sangue os lugares-comuns e os estereótipos do cinema da década de 70. No entanto, é exatamente na composição de seus filmes que ele se mostra genial, acrescentando minimalisticamente um e outro detalhe que faz toda a diferença. Os diálogos são superficiais, mas envolventes. Os personagens são caricatos, porém sedutores. Os cenários são pop, mas também pop art, na invocação da participação do espectador, na desmistificação do bom-gosto e do sublime da arte clássica. O diretor trilha o caminho inverso da comunicação de massa e mostra como a arte consegue surrupiar da sociedade hipócrita seus ícones e produtos para, então, jogá-los contra o mesmo sistema que os produziu. Sob esta ótica, À Prova de Morte prescinde de qualquer transcendência. Transcender o gênero seria perder a sua essência e, assim, a sua potência. Por isso, Tarantino desvela fraquezas, inseguranças, repressões exatamente no local que melhor exorciza o medo do abandono – a estrada – espaço onde o cinema americano se reinventou na década de 70, a partir de “Easy rider”. É um prazer degustar o coquetel que Tarantino prepara de referências à cultura pop e a um certo tipo de cinema que não costuma ser visto como obra de arte. O filme não força a idolatria à tipologia para reeditar a história já vista em outras produções ou para cultuar o cinema pelo cinema (religião). Apenas enfia com vontade a agulha na veia do gênero e de seus lugares-comuns, para encher a seringa com um espesso líquido quente que mistura cocotas de shortinho e bermudinha esfiapada ao redor de coxas grossas, close nos pés femininos, perseguições de carro e diálogos enebriantemente longos – tudo isso a serviço do universo tarantinolândico que tanto nos fascina.