quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

994 - PARIS, TEXAS


PARIS, TEXAS (ALEMANHA, FRANÇA 1986) – de Win Wenders. Paris, neste caso, não é a capital francesa, mas sim o nome de um terreno no Texas, onde Travis Clay Henderson (Harry Dean Stanton) foi concebido. Por isso ele compra este terreno e passa a carregar uma foto dele. Desta forma, “Paris, Texas” pode ser analisado como sendo, para Travis, a origem, e o filme Paris, Texas pode representar sua trajetória de retorno e sua reconstrução, confrontando o passado. Nesse sentido, os rumos que o protagonista segue partem de uma reflexão acerca de sua própria origem, seus pais, seu passado, para remendar as cicatrizes, a busca respostas em si mesmo, sobre família, paternidade, amor… As imagens em Super-8 não mentem. Travis, seu filho Hunter (Hunter Carson), seu irmão Walt (Dean Stockwell) e a esposa deste, Anne (Aurore Clément), assistem às imagens deles juntos com Jane (a esposa que o abandonou, a bela Nastassja Kinski) em um fim de semana na praia alguns anos antes. Todos felizes, Super-8 registrando a família feliz, praticamente um álbum de recordações. Este fragmento de cerca de quatro minutos – metalingüístico, granulado, com câmera na mão, típico filme caseiro de família – é um destaque dentro de Paris, Texas, afinal é um trecho que se passa em outra esfera temporal; um outro contexto que demonstra a felicidade (que destoa do resto do filme) e as memórias que são premissas para a história de reconstrução que é Paris, Texas. Trata-se de uma obra sobre a reconstrução da vida de Travis. Ele é encontrado em um deserto texano perambulando mudo, a partir daí acompanharemos sua trajetória: ele esteve anos desaparecido e agora lidará com o retorno à sociedade, o confronto com o passado e com sua família despedaçada. É interessante o fato de sermos conduzidos à história do protagonista aos poucos. Na mesma medida em que ele vai se deparando com seu passado, vamos descobrindo os elementos da história, a linha narrativa do filme seguindo a perspectiva de Travis. Isto gera empatia e é interessante, pois há um grande passado que é premissa do filme. Porém, enquanto o protagonista não se confronta com tal, nós não o sabemos. Portanto, mesmo que Paris, Texas utilize uma narrativa linear clássica, há uma forma um tanto fragmentada no modo como somos conduzidos pela história, junto com o introspectivo Travis. Em sua trajetória nesse road movie, ele “reaprende” o convívio social, e tenta dominar os estratagemas que compõem a comunicação para, assim, reatar-se com seu irmão, Walt, e posteriormente com o filho, Hunter. E, por último, há Jane (Nastassja Kinski, meu Deus!): enquanto memória ela é viva ao longo do filme todo, por foto, Super-8 e nos diálogos, a todo momento nos é sutilmente lembrado que há uma última ponta solta do passado a ser atada. Quando, após 97 minutos de filme, Jane aparece efetivamente em cena, estamos diante de um daqueles personagens mesmerizantes, que roubam a cena, ficam em nossa memória, quase palpáveel. Jane é a Mãe símbolo que preside o filme. Paris, Texas desenvolve uma reflexão sobre tal, colocando a Mãe como a base da estrutura familiar, aquela que realmente cria e deve criar o filho, vide a relação de Travis com sua mãe de quem sempre fala, de Hunter com Anne (que cria o garoto como uma mãe) e de Hunter com Jane (a mãe biológica). Jane é Amor, pela perspectiva do protagonista, e esta é, em grande parte do filme, a perspectiva dominante na narrativa; o olhar de Travis é muitas vezes o olhar do espectador, o sentimento dele por Jane está sujeito fortemente à identificação por parte de quem assiste o filme, em virtude do modo como a narrativa se desenvolve e da empatia do personagem. Jane é Felicidade, mesmo que seja na memória, no passado retratado muito bem pela metalinguagem (marca autoral recorrente em Wenders) pelo filme Super-8 ao qual os personagens assistem. A felicidade é, então, os bons tempos, que passaram… As três cenas em que Jane aparece, compõem o belo desfecho do filme. As cenas entre ela e Travis destacam-se pela emoção e pela técnica certeira, o plano frontal, com uma delicada composição de quadro, e com Jane no meio da tela, é absoluto. Há a perspectiva de Travis, que a vê sem ser visto, assim como nós que assistimos ao filme, que a vemos na subjetiva frontal. É magistral a sequência em a imagem dos dois se superpõem no vidro do peep show. Aliás, nossa identificação com o protagonista não é apenas na perspectiva, há a tensão, a apreensão e a expectativa que nos acompanham. Neste momento, já se foram mais de noventa minutos de filme, tendo gradativamente crescido nossas emoções consoante com o sutil desenvolvimento de Jane, no início memória ou assombração, mas cada vez mais viva e com a presença necessária, até se culminar na cena em que os dois conversam. Paris, Texas nos convida a pensar sobre a felicidade, a família e o amor, e sobre o potencial nefasto que nossos atos equivocados podem causar. Trata-se de uma tragédia, que Wenders nos passa sem efetivamente mostrar cenas da destruição e nos mostrando apenas um pequeno trecho da época feliz. O que importa neste retrato da tragédia não é tanto o fogo ou o incêndio, são as cinzas com as quais se pode sentir o fogo, sentir o incêndio. Wenders nos mostra a pós-tragédia da família Henderson de forma que conseguimos visualizar tudo o que deve ter se passado antes e, o melhor, podemos assistir à redenção, a reconstrução após as cinzas.