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A MOSCA (THE FLY, USA, 1986) –
Clássico da ficção científica de horror dos anos 80, A MOSCA ainda é um exemplo
de cinema com alma – desde a concepção do roteiro aos efeitos especiais
mecânicos que, curiosamente, acabam por dar mais vida ao processo kafkiano no
qual se mete Seth Brundle (Jeff Goldblum) quando, ao testar seu experimento de
teletransporte, vai se transformando numa mosca e, gradualmente, perdendo sua
humanidade. Este processo é mostrado com rara maestria por David Cronenberg,
através de cortes precisos e manipulação ágil da câmera, quando nem se sonhava
com os CGIs de hoje em dia, nem todos satisfatórios, diga-se. Sob a ótica
existencialista, A MOSCA é um filme devastadoramente perturbador, pois
condensa, num processo metafórico perverso, a decadência humana pela qual todos
passamos. A história, contada com tão intensa repugnância, faz os espectadores
se sentirem tão perdidos e sem esperança quanto seu protagonista. Rejeição, inadequação social,
mutações físicas e psicológicas apresentam semelhanças e diferenças entre o
destino de Gregor Samsa e esta obra cinematográfica, ambos ótimos materiais
para um exercício de literatura comparada. O conceito deleuziano de “devir”
também pode ser explorado numa análise mais aprofundada, pois, como se vê no
roteiro, tudo pode acontecer e mudar a ordem das coisas. Cronenberg põe o foco
nas consequências psicológicas oriundas dessa mudança na vida de Seth que
colocam a produção no patamar de um dos melhores filmes que discutem o impacto
da ciência e das diatribes sociais no bojo da sociedade contemporânea. É uma
reflexão muito oportuna sobre a natureza da mortalidade humana, num filme que é
muito mais sobre ideias do que efeitos especiais “per se”.